A obesidade infantil é hoje considerada uma das principais ameaças de saúde pública global, com impactos que se estendem da infância à vida adulta.
Segundo a OMS, o número de crianças e adolescentes com sobrepeso ou obesidade aumentou mais de dez vezes nas últimas quatro décadas. No entanto, apesar dos avanços no entendimento do problema, a prática clínica muitas vezes ainda se apoia em ferramentas simples e limitadas, como o índice de massa corporal (IMC).
Embora o IMC seja útil como rastreador populacional, ele não revela a complexidade fisiológica envolvida no acúmulo de gordura corporal, nem identifica o risco metabólico real de cada criança.
Aqui, nos aprofundamos nas limitações do IMC e exploramos os marcadores que o médico deve incorporar à sua avaliação para construir uma abordagem mais eficaz e personalizada.
Por que o IMC é limitado na infância?
O IMC é calculado pela fórmula peso (kg) dividido pela altura ao quadrado (m²), criando um número padronizado que permite comparações.
Entretanto, ele não diferencia massa magra e massa gorda. Crianças ativas podem ter IMC elevado por massa muscular, enquanto crianças sedentárias podem ter IMC normal, mas excesso de gordura visceral.
O IMC não mostra a distribuição da gordura, a gordura abdominal tem impacto metabólico muito maior que gordura periférica.
Da mesma forma, ele não considera aspectos fisiológicos individuais, como a influência de hormônios (leptina, insulina, cortisol), genética e regulação hipotalâmica.
Aspectos fisiológicos por trás da obesidade infantil
O acúmulo de gordura corporal não é apenas resultado de excesso calórico. Ele envolve um complexo jogo de sinalizações fisiológicas:
Leptina:
Hormônio produzido pelo tecido adiposo, teoricamente sinaliza saciedade. Porém, crianças obesas frequentemente apresentam resistência à leptina, ou seja, apesar dos níveis elevados de leptina, o cérebro não responde adequadamente ao sinal de saciedade, perpetuando o ganho de peso.
Insulina:
Além de seu papel de regulador da glicose, a insulina estimula a lipogênese e inibe a lipólise. Crianças em fase inicial de obesidade frequentemente já apresentam hiperinsulinemia compensatória, criando um ciclo de armazenamento de gordura.
Cortisol:
O estresse crônico e fatores psicoemocionais elevam os níveis de cortisol, que, por sua vez, aumentam o apetite e a deposição de gordura abdominal, exacerbando o quadro.
Grelina:
Conhecida como hormônio da fome, a grelina participa do ciclo de regulação do apetite. Alterações nos padrões de sono, atualmente muito comuns em crianças expostas a telas excessivas, impactam diretamente os níveis de grelina, aumentando a ingestão alimentar.
Marcadores clínicos e laboratoriais além do IMC
Para uma avaliação clínica mais robusta, o médico deve considerar:
- Circunferência abdominal: indicador direto de gordura visceral e risco metabólico.
- Relação cintura/altura: mais preditiva de risco cardiovascular do que o IMC isolado.
- Perfil lipídico: colesterol total e triglicerídeos.
- Glicemia e insulina de jejum + HOMA-IR: avaliam resistência insulínica.
- Pressão arterial: hipertensão secundária pode estar presente.
- Marcadores inflamatórios: PCR ultrassensível, interleucinas, TNF-alfa (em contextos de investigação mais detalhada).
- Avaliação hormonal (caso necessário): cortisol, hormônios tireoidianos, androgênios, dependendo dos sinais clínicos (puberdade precoce, acantose nigricans, alterações menstruais em meninas, etc.).
O papel do médico na prática clínica
Mais do que prescrever dietas ou recomendar atividade física genérica, o médico precisa identificar precocemente crianças com risco metabólico oculto.
Individualizar condutas com base em achados clínicos e laboratoriais, trabalhar em rede com nutricionistas, psicólogos e educadores físicos para criar intervenções integradas, além de aconselhar pais e cuidadores sobre o impacto do ambiente doméstico e social na saúde infantil.
Alimentação ultraprocessada, padrão de sono, estresse familiar e uso de telas são moduladores epigenéticos reais.
Leia também sobre: Fisiologia Hormonal: O que é e como ela pode transformar a prática clínica?
Um olhar além para a obesidade infantil
A abordagem da obesidade infantil precisa ultrapassar a superfície do peso corporal.
Como profissionais de saúde, médicos são chamados a enxergar a fisiologia por trás dos números, reconhecer os múltiplos fatores que interagem no ganho de peso e atuar precocemente para reverter um cenário que ameaça a saúde futura dessa geração.
Intervenções precoces podem prevenir o avanço para doenças crônicas na vida adulta. E, ao identificar os marcadores certos, o médico pode orientar mudanças personalizadas que envolvem desde alimentação, movimento, sono, apoio emocional e, quando necessário, intervenção hormonal.
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